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10.2.05

um sorriso pior que a morte 

" Havia um silencio como quando há tambores batendo.
Quanto a Ermelinda, ela estava muito ferida porque não o amava mais. Pois não o amava mais. Passara a grande atração que justificava toda uma vida. Ela estava ferida e melancolica. Era uma dor morta. Eis a água - e eu não preciso mais bebe-la. Eis o sol - e eu não preciso mais dele. Eis o homem - e eu não o quero. Seu corpo perdera o sentido. E ela que se havia concentrado toda na antecipação do dia em que Vitória fosse a vila e lhe deixasse o homem para si mesma, enfim sem esconderijos, enfim sem cautelas - ela só o procurou uma vez em que lhe disse triste, honesta, indireta :
- Um dia amei um homem. Depois deixei de ama-lo. Não sei porque o amei. Não sei porque deixei de ama-lo.
Martim, preocupado com o alemão, não soube o que retrucar e então perguntou:
- E depois você se tornou amiga dele?
E se assim ele perguntou é porque estava desamparado e precisava de amizade.
- Não, disse ela olhando-o devagar. Não. A amizade é muito bonita mesmo. Mas o amor é mais. Eu não podia ter amizade por um homem que eu tinha amado.
- E depois? perguntou ele com uma angustia cujas raízes ele proprio ignorava.
- Depois, disse ela, depois eu chorava de tristeza, até sem dor. Eu pedia: me faça sofrer por amor! Mas nada acontecia e eu estava de novo livre.
- E não era bom estar livre?
- Era como se os anos tivessem passado e eu visse num rosto que antes tinha sido tudo para mim, eu visse nesse rosto aquilo do que é feito o amor: de nós mesmos. E era como se até o amor mais real fosse feito de um sonho. E se isso é ser livre, então eu estava livre.
Como Ermelinda nunca lhe dissera que o amara a ponto de ter tido uma vida, Martim não soube que ele próprio era o homem agora amado, nem entendeu que ela deixara de ama-lo. Mas como se lhe implorasse uma verdade mais piedosa que a realidade, ele pleiteou em desespero a causa de um outro:
- Mas que é que impedia você de se tornar sua amiga? pediu ele.
- Eu estava sozinha, disse ela.
O homem entristeceu, escuro pesado. Nada fora dito que pudesse ser depois lembrado. Mas os dois se olharam com um sorriso pior que a morte, silenciosamente submissos a natureza.
Ciscando a terra com o pé, mantendo as mãos nos bolsos, Martim disse por dentro quieto, intenso: "por favor!" Ele não soube propriamente que estava pedindo, e disse: "por favor".
Mas era como um homem que morrendo de fome dissesse polidamente: por favor. As costas que Ermelinda lhe virou para ir embora não tinham rosto, eram estreitas e frageis costas. No entanto com que amargo vigor elas disseram ao homem: não.
E os tambores continuaram batendo. "

.a maçã no escuro. clarice lispector.



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seria mais facil mesmo se não amasse. se soubesse do que é feito o amor e o apagasse. facil quem sabe? mas eu não o faria. estou doente demais, cansada. velha. labios e olhos costurados em arame que agora eu devo abrir. verificar o que esta a minha volta. eu estava acostumada a um conforto, eu estava tão aconchegada... e de repente veio esse frio. e eu tinha que respeita-lo. era medo. mas não era. era algo que eu não sei dizer o nome. eu aperto as unhas na palma da mão. eu olho fixamente e tento me acostumar a claridade. muito claro sempre e eu não sei viver assim.
gostaria de deixar apenas o vento me tocar. dormir tranquilamente e acordar renovada. estou paradinha aqui em mim mesma. e entendo. esse mar de sofrimento. não mereciamos. estou buscando ficar lucida. quem sabe arrumar meu quarto. cuidar da saúde fraca. do coração cansado. vai passar... vou conseguir... vai passar.
e voltarei a ser.



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