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8.6.08

A lentidão 

Na linguagem corrente, a noção de hedonismo designa uma inclinação amoral para uma vida voltada para o prazer, até mesmo para o vício. Certamente a noção é inexata: Epicuro, o primeiro grande teórico do prazer, entendeu a vida feliz de um modo extremamente cético: sente prazer aquele que não sofre. É o sofrimento, portanto, que é a noção fundamental do hedonismo: somos felizes na medida em que sabemos afastar o sofrimento; e como os prazeres trazem muitas vezes mais infelicidade do que felicidade, Epicuro não recomenda senão os prazeres modestos e prudentes. A sabedoria epicurista tem um fundo melancólico: atirado à miséria do mundo, o homem constata que o único valor evidente e seguro é o prazer mesmo pequeno, que ele próprio pode sentir: um gole de água fresca, um olhar para o céu (para as janelas de deus), uma carícia.
Modestos ou não, os prazeres só pertencem aquele que os experimenta, e um filosofo, com toda razão, poderia criticar no hedonismo seu fundamento egoísta. Entretanto, na minha opinião, não é o egoísmo que é o calcanhar de aquiles do hedonismo, mas seu caráter (ah, tomara que eu esteja enganado!) desesperadamente utópico: na verdade, duvido que o ideal hedonista possa se realizar; receio que a vida que ele nos recomenda não seja compatível com a natureza humana.

pp. 11





Há um vinculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. Imaginemos uma situação das mais comuns: um homem andando na rua. De repente, ele quer se lembrar de alguma coisa, mas a lembrança lhe escapa. Nesse momento, maquinalmente, seus passos ficam mais lentos. Ao contrário, quem esta tentando esquecer um incidente penoso que acabou de viver sem querer acelera o passo, como se quisesse rapidamente se afastar daquilo que, no tempo, ainda esta muito próximo de si.
Na matemática existencial, essa experiência toma a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.

pp. 42

Quando as coisas acontecem rápido demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo.
(...) lembrei a equação bem conhecida de um dos primeiros capítulos do manual da matemática existencial: o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento. Dessa equação, podemos deduzir diversos corolários, este, por exemplo: nossa época se entrega ao demônio da velocidade e é por essa razão que se esquece tão facilmente de si mesma. Ou prefiro inverter essa afirmação e dizer: nossa época esta obcecada pelo desejo do esquecimento e é para saciar esse desejo que se entrega ao demônio da velocidade; acelera o passo porque quer nos fazer compreender que não deseja mais ser lembrada; que esta cansada de si mesma; que quer soprar a pequena chama trêmula da memória.

pp. 136


Milan Kundera

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